sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

BOLEROS, TANGOS E FLAMENCOS

Querido D.

Os boleros chegaram pra mim loguinho depois de você. E o tango e o flamenco.  E depois dêles veio o forró que aliás dancei muito nos terreiros arenosos da praia de Meaipe, no quintal das escolas quando de visita de passagem.  Até tinha o meu professor de dança, que depois descobri era também o traficante local – rapaz de corpo forte e de olhos muito fundos que gostava de dançar com a gringa brasileira e que vendia loteria e jôgo do bicho.  Sempre que eu visitava a sala do forró, uma vez por ano, nas férias, êle me procurava logo e pedia pra dançar.  Já dava pra saber bailar quase que flutuando como aqueles casais do forró fazem, patinando pela poeira do terreiro.

A minha herança germânica aliás não acho que foi o que me conteve. Me deu a força séria de me manter em foco e me deu uma paixão muito grande pela filosofia.  Até hoje.  Creio que a gente (em geral) seja um amálgama de tudo que vai a ser.  Não somos parte do passado, nem em memória, pois no recontar e relembrar já viramos a página e escrevemos com tinta nova. Essa é a beleza da coisa.

Algum filósofo pos-moderno disse recentemente que o pensamento existe no lugar onde existe lugar e espaço.  E que pensar é esquecer. “Thinking is forgetting. Only in forgetting can thought be born. We think because we forget. Thinking generalizes, synthesizes, eliminates peculiarities, but only as forgetting enables it. Forgetting traverses thought with the same intensity as memory. Neither forgetting nor memory is absolute; the capacity for thinking rests upon this notion.

O relembrar e a memória, o recordar, recontando é ato definitivo do ser no futuro, digo eu. 
 
Acabo de voltar lá do Botânico, onde trabalho, de uma noite de “Magic in the Meadow”, – uma festa enorme de beneficiência nossa, debaixo de uma tenda enorme e iluminada com pontas agudas que nem o aeroporto de Paris ou seria o de Denver? Pôr do sol com nuvens mágicas de outono e mucho dinheiro. Mágico itinerante, leilão silencioso e ao vivo, música, comida gostosa, muita bebida.  E até telescópios pra gente ver Jupiter de muito perto no plano ilusório do visual com todas as luas de sobremesa. O presidente do Conselho deu um milhão de dólares para a nossa campanha.  E pra minha surprêsa, mencionou o meu nome e o meu trabalho com os voluntários no seu discurso.

Sua carta me comoveu. Me lembrei de uma vez quando você me mandou uma dúzia de rosas vermelhas (porque as amarelas e minhas preferidas não tem muito gôsto) com um cartãozinho dentro, com sua letra de tinta azul elegante caidínha pra direita e pequena “para você comer e fartar-se”.  Isso depois de você ter descompassado o meu sentido do sexo, chegando em casa, como você chegou, de Uberaba ou de Uberlândia, cheio do cheiro das mulheres com quem você acordou ou adormeceu. 

(All my Princes are dead…)

Já naquela época, tinhamos “issues”, questões quanto a minha necessidade tão poderosa de fartura, de excessos, de paixões, de quebra e de extrapolação dos limites.  Hoje, depois de tanto tempo, continuo trabalhando essa e as outras duas ou três idéias primeiras, aqueles temas maiores da nossa juventude, quando o mundo éramos nós, quando ríamos dos limites – (pelo menos eu ria e chorava) e empurrava e batalhava para que a enormidade do meu entendimento também fôsse o seu.  E o do mundo. 

Você, de mais comedido, queria mais calma e mais ordem e queria trabalhar dentro da realidade do dia.  Paz a tranquilidade. Você sempre dizia que eu devia aprender a trabalhar dentro do sistema. E hoje eu trabalho bem dentro de algum sistema.  (Com muita dificuldade…, mas isso é papo para outra estória)

Hoje sei que aquele entendimento meu, aquele comportamento ainda é meu e me define.  E continuo empurrando e me ajustando e inventando e criando e escrevendo até que alguma centelha de gênio transparece.  Alguma poesia.

Me encanta saber, que pra você também, o eterno ficou.

Aí, como eu conto a estória para amigos meus, você, de poeta que eu amava, se tornou advogado. E tudo foi por água abaixo pra mim. (:”)

O mundo é o mesmo, as palavras as mesmas, os sentimentos bastante os mesmos, nesse território, o amor.

Beijo,

Erica
 

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